quarta-feira, 28 de abril de 2010

leave this academic factory


Na minha visão bastante pessoal de valores, acredito na importância de ritos de passagem. E acredito que shows de rock contam como forma de um. Para marcar o fim de dois ciclos recentes em minha vida, fui a dois deles.

Primeiramente, no final de março, embarquei para São Paulo para conferir Franz Ferdinand ao vivo. Quatro dias antes da viagem, deixei meu estágio após mais de um ano de trabalho. Foi meu primeiro emprego.

Eu aprendi muito por lá, mas, verdade seja dita, poderia ter deixado o local antes – já tinha visto de tudo antes de um ano, mas eu adorava meu trabalho. Mesmo. Ao contrário de minhas expectativas, meus colegas eram solícitos e bem-humorados, meus chefes acessíveis e bons de papo, a infra-estrutura era ótima, tinha acesso privilegiado a informações interessantes e a um conteúdo pouco ou nada visto na faculdade e, acima de tudo, era um trabalho recompensador: sempre saía – e muitas vezes após o horário do fim do turno – com a forte impressão que tinha feito uma diferença naquele dia.

Como a maior parte de minhas decisões, ela se cristalizou da noite para o dia e, apesar de tudo, tive a certeza que já era momento de deixar o estágio. Sim, fiquei um pouco triste, afinal era algo que eu gostava e fiz vários amigos lá, mas não me arrependi em momento algum. Sempre soube, quanto a qualquer coisa, que se acabou, acabou. E se é assim, é preciso seguir adiante. Foi o que eu fiz quando percebi que era o momento.

Por uma incrível coincidência, o show do Franz caía na semana seguinte, o que se tornou a ocasião perfeita para lavar a alma e marcar o fim de um ciclo, por assim dizer.

Desde a primeira vez em que os ouvi, Franz Ferdinand se tornou uma de minhas bandas favoritas. Sempre quis ver uma apresentação deles e nas últimas ocasiões em que estiveram no Brasil fui impedido por vários fatores de ir. Esta não perderia por nada.

Eis que me juntei a quatro amigos e partimos no mesmo dia que o show para São Paulo, de avião.

Cabe um comentário aqui: é incrível pegar um avião sem qualquer tipo de mala. Sem nada, só documentos, grana, celular e ingresso nos bolsos. Liberdade, ainda que tardia.

Claro que nem tudo sai como planejado – para meu completo espanto. Apesar de nossa (ok, minha) organização prévia, não controlamos o tempo ou o tráfico aéreo, o que resultou em um atraso colossal. Ao invés de chegarmos a SP às 16 horas, desembarcamos às 19 horas, sendo que a abertura da casa era às 20 horas.

Honestamente, eu nunca vejo ou faço qualquer questão de conferir um show no gargarejo, colado no palco. Mas o do Franz eu fazia. Assim, chegamos correndo na cidade, pagamos dois táxis e chegamos em pouco tempo no Via Funchal – que, logicamente, estava com uma fila imensa. Contudo, com um pouco de paciência e elasticidade de valores morais, conseguimos ser um dos primeiros a entrarem.

Cabe aqui outro comentário: como paulista é um povo pau-no-cu. Conheço vários, mas as pessoas que estavam ao nosso lado são de uma categoria à parte mesmo. Um grupo, por exemplo, insistiu em permanecer sentado até o início do show de abertura. Ou seja, vinte pessoas, equipadas com óculos Wayfarer, xadrez, calças coladas e gritinhos, que se recusavam a levantar e abrir espaço para a enorme quantidade de gente que não parava de chegar ou empurrar. Bacana.

Anacrônica, banda daqui da cidade, abriu a noite e fez bom show, mesmo enfrentando o pouco caso e a frieza paulistana.

Pontualmente, às 22 horas, Alex Kapranos e seus comparsas entraram no palco e, cara, que show.

É verdade, entraram com o jogo ganho, mas nem por isso deixaram de se esforçar. E tome-lhe sucessão de hits. São poucas bandas do século XXI com tantas músicas conhecidas que podem fazer uma apresentação sem dar tempo ao público de respirar.

No meu caso, isto foi bem literal. Sem espaço para lufadas muito profundas de ar ou para colocar os braços para baixo, passei pelo maior aperto de minha vida. Pra começar, não há espaço pessoal ou pudor em tocar, na realidade colar, no próximo – e isto me inclui. Passei o show inteiro com os braços ao alto (pois não havia espaço para abaixá-los) e quando preciso (pois isto é incrivelmente cansativo) os descansava nos ombros ao lado – que odiavam, vez que era um peso a mais em um lugar já sujeito a muita pressão.

Durante a apresentação, perdi a conta do número de pessoas que desistiram de estar ali e foram retiradas pelos seguranças. Mais de trinta, fácil, a grande maioria mulheres. Realmente, gargarejo não é lugar de menina.

E o calor, meu Deus. Nunca suei tanto em minha vida. Glândulas nunca utilizadas antes me deixaram mais encharcado que alguns banhos de chuva que já tomei e transformaram o abraço que dei nos meus amigos (que desistiram cedo de ficar na frente) ao final do show em uma das maiores provas de amizade que já presenciei.

Com um tremendo set list, que incluía músicas que adoro e jurava que não iriam tocar (como All my friends, Tell her tonight e Michael), abriram com a ótima Bite hard, já gastaram Take me out no comecinho, como se nem fosse grande coisa, e fizeram uma versão demolidora de This fire (minha favorita e, com imparcialidade, a melhor da noite).

Saí completamente feliz e realizado do show, encharcado e nunca me sentindo tão exausto, em um torpor de alegria e cansaço quase débil.

Franz encerrado, partimos para um McDonald’s 24 horas e tentamos nos recuperar lá, sem muito sucesso. Terrivelmente cansados, não tínhamos para onde ir. Não fizemos reservas – nem tínhamos verba – para hotéis, nem tínhamos amigos para fornecer casa, sofá ou cama – embarcar para qualquer bar ou balada estava fora de cogitação, apesar de eu ter feito a proposta, que foi afastada pelos meus companheiros tão demolidos pela noite quanto eu. Assim, nosso único compromisso era o vôo de retorno, em algumas horas (em oito horas, para ser exato).

Resultado que decidimos ir mesmo para o aeroporto. Detalhe desconhecido: Congonhas fecha de madrugada. O saguão fica aberto ao público (e só), mas fica tudo deserto e com o ar-condicionado desligado (desumano para dizer o mínimo). Beleza, nada que algumas cadeiras juntas da praça de alimentação não resolvam, o que não significa que dormi bem ou que descansei qualquer coisa.

Lições aprendidas com o show: gargarejo não vale o esforço. Nunca mais. Fiquei incrivelmente feliz por ter feito isso no Franz, entretanto – terminei, já algumas músicas antes do bis, exatamente na frente do vocalista, com uma garota de 1,5 metro entre a grade e eu. Obviamente, esta garota não virou minha amiga.

Outra lição importantíssima: não há dinheiro no mundo que pague um chuveiro e uma cama após o show. Daria um braço para ter um porto que não fosse o banheiro de uma rede de fast food ou quatro cadeiras de metal unidas. Sinceramente, se de avião já é dose, não quero nem imaginar fazer bate-e-volta de ônibus em excursões. Sério, qualquer hotel é barato – especialmente ao levar em consideração que peguei uma gripe fortíssima por freqüentar o aeroporto ainda bem molhado, sem troca de roupa, e com as defesas baixas após o desgaste de energia no Via Funchal. Por fim, ainda houve outros aprendizados como “não, eu não controlo aeroportos”, “Congonhas fecha durante a madrugada” e “certifique-se de levar amigos”.

Em suma, impossível evento melhor para marcar meu recente desemprego.

Um dos motivos para deixar meu trabalho foi também a proximidade da data de entrega de minha monografia. Como já mencionei aqui, foi um processo sofrido. Logo, nada mais adequado que ir a outro show. Como rito, que seja.

Na semana seguinte a entrega final, Placebo esteve na cidade e consegui decidi ir de última hora. Conhecia algumas músicas deles e gostava destas, mas nunca foi uma banda pela qual dei grande atenção. Nunca havia comprado um cd deles, por exemplo.

Hoje, porém, posso afirmar que o Placebo passou pelo teste e compraria um disco deles sem problemas. Contrariando minhas previsões – e imagino também da pequena platéia presente – a banda realizou um show forte, redondo e, na falta de palavra melhor para o caso, muito “macho”.

Mesmo sempre tendo flertado com a androgenia e o glam, fizeram uma apresentação sóbria, com uma pose de distanciamento “cool” – devidamente quebrada pelo calor do público, formado principalmente por fãs que sabiam cantar quase todas as músicas – para meu constrangimento.

Tendo por apoio um telão de LED com imagens psicodélicas ao fundo, a banda fez um show que passou rápido, já abrindo com For what it’s worth (simplesmente a melhor música deles dos últimos anos), com o público ainda frio.

Impressionante mesmo foi Meds. A platéia foi a um delírio tal que despiu a banda da pose, fazendo-os inclusive parar a canção no final para escutar os gritos e – pasme – sorrir várias vezes para o público. Só o começo de uma seqüência pré-bis demolidora (Meds, Song to say goodbye, Special k, The bitter end).

Ainda assim, para mim o melhor da noite foi Song to say goodbye. Se você enxerga shows como uma experiência possivelmente transgressora, esta música cumpriu o requisito. Algo só explicado pelo momento mesmo: a canção anterior foi excelente, os músicos estavam animadíssimos, platéia em chamas, guitarras altas, coração acelerado, adeus consciente à monografia.

Engraçado como saí do show como o oposto ao do Franz. Um dos raros em que deixei o lugar me sentindo mais forte e disposto de que quando entrei, como se tomado por uma força que eu já tinha mas que é difícil de ser acessada sozinha. Tão bom quanto sair exausto é sair renovado.

É pra isso que um show serve.